Letramentos de reexistência: Rap nacional como um movimento de educação e de ressignificações
Paulo Freire, reconhecido mundialmente, chama de “Leitura do mundo” o processo pelo qual assimilamos nossa realidade para o desenrolar do aprendizado; basicamente é usar nossas vivencias (como enxergamos e compreendemos o mundo) para o desenvolvimento de conhecimentos (Freire,1996), assim como citado por Tasha e Tracie e vários outros nomes do Rap e do Funk. Segundo Freire: “Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E tudo isso vem explicando ou sugerido ou escondido no que chamo de leitura do mundo, que precede a leitura da palavra.” (Freire, 1996). Partindo desse conceito de Freire, pode-se ver que ícones da cena como Racionais MC’s, Sabotagem, RZO, Trilha Sonora do Gueto e vários outros nomes fazem uso de seu cotidiano para formular críticas sociais (também como uma forma de se impor contra o sistema) e para a construção de narrativas reais, que levam (e elevam) conhecimento.
Nas músicas dos Racionais MC’s, RZO, e etc.
é possível perceber que existem linhas narrativas, e isso que é construído ao
longo das músicas não surgem do nada, mas sim de suas experiencias de vida:
“Crime, futebol, música, carai'/Eu também
não consegui fugir disso aí/ Eu sou mais um/ Forrest Gump é mato/ Eu prefiro
contar uma história real/ Vou contar a minha/ Daria um filme/ Uma negra e uma
criança nos braços/ Solitária na floresta de concreto e aço/ Veja, olha outra
vez o rosto na multidão/ A multidão é um monstro sem rosto e coração/ Hei, São
Paulo, terra de arranha-céu/ A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel/ Família
brasileira, dois contra o mundo/ Mãe solteira de um promissor vagabundo/ (...)/
Eu num li, eu não assisti/ Eu vivo o negro drama/ Eu sou o negro drama/ Eu sou
o fruto do negro drama” (Racionais MC’s, Negro Drama. 2002);
[Verso:
Salvador da Rima]
“E o bagulho ficou embaçado pro meu lado lá
na minha quebrada/ De tanto dar fuga nos cana, eles 'tá na maldade do menor das
prata/ Por mais que eu só ando sem placa, na quebrada nós não usa capa/ E os
cara decorou minha face e parou na favela já me dando tapa/ A população já se
revoltou, mó salseiro na comunidade/ O foda é que eu 'tava parado, quero ver
pegar se eu 'to em cima da Tiger/ Essas fita é que é revoltante, cotidiano na periferia/
Tenho que explicar que não sou assaltante, conquistei minhas coisa com a minha
correria/Mas esses cara não quer nem saber, se não 'tá devendo, 'cê correu por
quê?/ Vou parar pra quê? Ficar escutando bigode de bosta? Só sabe xingar e
ofender/ Olho grande na nave esportiva, com inveja do material/ E a Cyclone
junto com as corrente, o relógio avalia trinta mil real/ Pode pá, outfit
bolado, molecote 'tá habilitado/ Vai ter que aturar que nós é favelado e de
foguete zero com as roda pro alto” (Mc Cebezinho, Mc Hariel, Kayblack, Salvador
Da Rima, Mc Ryan Sp, Outfit Valioso 2);
“Me lembro de um irmão, troço chato/Subia,
descia por sobre o trem, sorria/Vinha da Barra Funda há 2 anos todo dia/Em cima
do trem com os manos/Surfistas, assim chamados são popularmente/Se levantou e
encostou naquele fio, / Tomou um choque/ Mas tão forte que nem sentiu, foi as
nuvens/ Tá com Deus, mano Biro sabe/ Subúrbio pra morrer, vou dizer é mole”
(RZO, O trem. 1999).
Poderia
citar uma série de outros exemplos, mais antigos ou mais recentes aqui, mas
vamo seguir, carai’
Peço licença para trazer a grandiosa Conceição Evaristo, pensadora brasileira que tem muito a dizer sobre si e sobre suas vivências. Evaristo cunhou o Termo “Escrevivências”, que se refere às narrativas que fazemos e que nascem partir de nosso cotidiano. Segundo a professora: “a nossa Escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injusto.”. Assim, percebe-se que tudo que é produzido no meio musical Afro diaspórico[1] carrega os conhecimentos que obtemos nas ruas, sejam os conhecimentos de um corre que fazemos, de uma caminhada, ida ao trabalho, ideias que trocamos com nossos (as/es) parceiros(as/es) e etc.; quer dizer, nossas experiencias cotidianas enquanto sujeitos periféricos e pertencentes à margem, que são apropriadas por nós para criar saberes e para romper com construções limitantes do que seria conhecimento.
A construção de nossas identidades passa por diversos processos; de reconhecer o que vivemos, de transformar nossa realidade e de se apossar de tudo que nos cerca. O Rap consegue elevar essas construções, já que reafirma as nossas vivencia em meio ao caos, como dito por Rincon Sapiência: “Sobreviver é uma arte nesse holocausto” (Rincon Sapiência, Cotidiano. 2021).
A
professora Ana Lucia Silva Souza chama de “Letramentos de Reexistencia” todos
esses processos de aprendizado nas ruas que surgem com nossas experiencias. Na
obra, a autora coloca o quão importante são esses saberes de rua que temos, que
são letramentos não valorizados pela educação formal (Souza, 2011). No Rap e no
Funk esses letramentos se mostram presente, já que as vivências enquanto
sujeitos moradores de periferia são umas das bases para as construções das
letras.
É
importante valorizarmos e entendermos nossos processos de aprendizado fora do
ambiente escolar (sem desvalorizar a escola), que são saberes usados no dia a
dia, e que nascem do nosso cotidiano. Aqui eu não pretendo romantizar as
necessidades diárias que nós passamos, mas pretendo colocar a importância de
entender esses letramentos.
[1] Tudo que é feito (culturalmente) com elementos da África e das Américas, que surgiu a partir do tráfico de pessoas negras para o continente Americano, a Diáspora africana trata-se dos conhecimentos forjados como forma de resitência e sobrevivência.
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Ref Ref
Bivolt feat. Tasha
e Tracie. Murda Murda, 2020.
Conceição Evaristo, entrevista no
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=QXopKuvxevY&t=367s.
EVARISTO,
Conceição. Olhos
D'Agua. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.
FREIRE,
Paulo. Pedagógia da Autonomia.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Mc Cebezinho, Mc
Hariel, Kayblack, Salvador Da Rima, Mc Ryan Sp, Outfit Valioso 2: GR6
Explode, 2021.
Racionais MC’s. Nada
como um dia após o outro V.I e V.II, 2002.
Rincon Sapiência,
Cotidiano, 2021.
RZO, RZO, 2014.
SOUZA, Ana Lúcia
Silva. Letramentos De Reexistência:
poesia, grafite, música, dança: hip hop. São Paulo: Parábola, 2011.
Mc Cebezinho, Mc Hariel, Kayblack, Salvador Da Rima, Mc Ryan Sp, Outfit Valioso 2: GR6 Explode, 2021.
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